Gilberto Gil em Berlim: deleite musical, perrengues e uma fatura em aberto

28 Aug 2022

Fátima Lacerda, de Berlim

Em sua participação do »Roda Viva«, (TV Cultura (23/05) o cantor, compositor e agora, imortal Gilberto Gil, ressaltou a importância da ancestralidade. A turnê »Nós, a Gente«  trouxe toda a família para já longa excursão no Velho Continente e colocou em prática exatamente o exercício dessa ancestralidade e valores tradicionais de família além de homenagear o tropicalismo com o chiquérrimo figurino assinado pela theparadise.rio.

A agenda que foi de 26 de Junho a 31 de Julho foi ousada, os locais de show excelência e relevância culturais.  O pontapé inicial foi no norte da Alemanha, Timmenendorfer Strand e o encerramento, no domingo 31 de Julho, em Malmesburry na Inglaterra, lugar onde Gil viveu em exílio durante 2 anos no período mais severo da ditadura Militar. As influências de Chuck Berry, Jimi Hendrix e dos Beatles foram a herança que permanece viva até hoje. Desse »Trio infernal«, a interpretação mais antropofágica é »Wait Until Tomorrow«, gravada originalmente em 1967 no disco Axis: Bold as Love de Hendrix e, preciosidade musical que faltou em Berlim.

A primeira vez que ouvi Gil, foi numa fita-cassete me dada por minha mãe, apaixonada pelos Doces Bárbaros e que, apesar da música não ser bem quista pelos militares na época da ditadura, ela não deixava de ir a nenhum show. No meus aposentos de filha da burguesia tijucana, num final de tarde de domingo, coloquei a fita pra tocar. A sonoridade que saia dalí em »Toda Menina Baiana« fez tudo em volta congelar e como um tsunami auditivo, meu horizonte musical se abriu como um leque de possiblidades.

A »Casa« em Berlim

No dia 05 de Julho foi a vez do esperadissimo show na capital. A última vez que Gil passou por aqui foi em 2018 e 2019, antes do mundo parar e antes da cultura, o amontoar de gente, se tornasse um risco de vida e uma ponte intransponível entre esquerdistas e bolsonaristas.

Em julho de 2019, quando Gil se apresentou na Casa das Culturas, o ex-presidente Lula estava preso em Curitiba e grandes nomes da Classe Artística evitavam falar de política em geral. Na época, depois de enfrentar uma guerra de nervos com a produção do local que dificultou tudo o que podia, além de me colocar como última da fila depois dos colegas  da imprensa internacional e ainda depois de esperar duas horas, foi somente pouco antes do show, que consegui falar com Gil, em exclusivo para o Diário do Centro do Mundo (DCM).

Numa de nossas inúmeras conversas ao longo do tempo que acompanho a carreira de Gil (Festival Montreux, Hamburgo, Berlin, RJ, SP, Bahia), ele confessou que quando se apresenta em Berlim, seu lugar preferido é a Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt), lugar, de locação privilegiada, no centro político da capital e uma menina dos olhos da política cultural na Alemanha, instituição de grande prestígio e visibilidade e com a relevância musical e cultural de Gil, mas é lamentável o curso tomado pela equipe de programação musical, se deixando levar por mesquinhesas e quedas de braço. Isso não é digno: nem para o setor, nem muito menos pela própria Casa e seu DNA: o diálogo entre diferentes culturas e, é óbvio que isso não se restringe à programação, mas sim a tudo em volta daquilo que deveria ser a prioridade, no valioso exercício de possibiltar cultura ou levá-la ao grande público.

Trabalhar com artistas não é similar ao trabalho num quartel ou numa repartição com rígidos códigos de disciplina e barreiras explícitas e implícitas e nem solo de adubo para desconfiança, repressão e hostilidade. É  preciso muito: empatia, boas antenas e bom senso mas nesse quesito, cada ano que passa o quadro se torna mais agravante. A equipe responsável pelo bloco de shows »HKW do Brasil« vem tenho péssimas atuações, fincadas na bússola de vitamina B, grau de simpatia e elitismo. A beira do Backstage tem uma fila que lembra as casas noturnas e práticas questionáveis de quem entra e quem não.

No campo cultural, e especialmente no diálogo entre diferentes culturas, isso é uma prática inadimissível e indigna para um lugar, antes recheado relevância cultural em todos os segmentos.

Em qualquer setor: na cultura, na política, a rotação de cargos e a ocupação deles é a garantia de uma dinâmica que uma dobradinha como goiabada com queijo. A Casa das Culturas precisa muito de uma renovação de pessoal e há motivos para um otimismo tímido, esse futuro pode estar bem próximo com a entrada do novo intendante, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, um homem de perspectiva abrangente, muito além de do horizonte europeu-centrista. Decerto haverá mudanças em vários setores.

Foi justamente em Berlim, qua a banda de Gil enfrentou seu maior desafio. A bagagem, com os instrumentos, extraviou. Na hora do almoço do dia 05, em sua conta do Instagram, Gil indagava ás companhias aéreas KLM e a Air France »Onde estão os nossos instrumentos?«. O violão no qual Gil tocou foi de um brasileiro de mora em Berlim há décadas e que, por nenhuma coincidência, faz cover das músicas dos baiano em barzinhos da cidade. O restante dos instrumentos foram alugados de última hora. Como bandeira pouca e bobagem, a cantora Petra Gil se sentiu mal durante a passagem de som e foi levada pela produtora de Gil, de volta para o hotel e não participou do show. Como se Petra Gil não fizesse falta, a estética dos movimentos da outra filha, a cozinheira-chefe, Bela Gil, em dança afro-baiana foi mais do que um regozijo visual para a retina, foi a coerência com o foco da ancestralidade. Teria sido um golaço, integrar e alinhavar a dança de Bela com a dramaturgia do show e não como somente um lance muito curto.

Nem mesmo os inúmeros perrengues em Berlim, minguaram a raça de Gil, seus filhos, netos e netas enquanto entregando, em cima no palco. A disposição física de Gilberto Gil, poucos dias depois de completar 80 anos é instigante, para dizer ao mínimo.

Mal iniciou o show com »Barato Total«, a redação da Ilustrada, caderno de cultura da Folha de São Paulo, mais especificamente seu editor em plantão, encomendava uma matéria com Gil incluindo perguntas sobre a PEC Kamikaze, na época em tramitação e sobre a »morte« da Lei Rouanet. Me foi prometido pela produtora que, depois do show, eu seria levada ao camarim para falar com Gil, mas isso não aconteceu. Sem as informações, o artigo se tornou obsoleto, mesmo antes de comecar a ser escrito via Whats App, à beira da escada que dava vista para o Backstage, com conterranos pedindo, implorando para falar com Gil, enquanto um funcionário de uma firma terceirizada, ficava de sentinela cuidando da »segurança«.

»Avisa lá« foi logo em terceiro lugar, incendiando o público no terrasso da Casa das Culturas numa tarde de verão daquelas para berlinense nehum botar defeito.

O sucesso dos Beatles, a oitava música da Set List »Get Back«, não poderia faltar. Eu teria preferido »Wait Until Tomorrow«. Entre as heranças dos Beatles, Chuck Berry e Hendrix a interpretada música de Hendrix, é a mais antropofágica.

A neta, Flor Gil Demasi, interpretou o Evergreen »Girl from Ipanema« em inglês firme, mas protagonizando o momento mais fraco do show, não pela falta de talento na voz que Flor já mostrou ter de sobra, mas pela dinâmica: um show de verão, ao ar livre, pede eletricidade. Pelo que parece, Gil vê cada vez mais uma necessidade desses evergreens em seus shows. A primeira parte o show um Flow, sem nenhuma obrigatoriedade de inserir um clássico em inglês, só por estar em solos estrangeiros. Como se fosse para agradar os gringos. A música de Gil fala e soa por si só.

A lista do Bis continha »Realce«, »Aquele Abraço« e »Toda Menina Baiana«

Política en passant

Só no final do show, veio o sinal com o »L«, avisando em quem irá votar. Para quem foi Ministro da Cultura no governo Lula e um dos responsáveis, por exemplo,  pela injeção financeira na Cinemateca Brasileira, tornando-a um órgão de referência para todo um setor cinematográfico muito além das fronteiras brasileiras, era preciso mais posicionamento. O Brasil se encontra no abismo para uma ditadura com claros sinais fascistas. Nada melhor do que passar essa mensagem ao maior número de pessoas possível. Os shows, os festivais são as melhores plataformas, ao contrário do que afirmou a produtora do Rock in Rio, e filha do Roberto Medina. A pergunta a se fazer seria, como não usar essas plataformas num momento político decisivo e com milhões de jovens entre 15 e 18 anos que tiraram seus títulos para fazerem parte daquilo que deve ser a construção de um novo país. A melhor forma de extravazar, de tomar espaço politico em público, é um mega-festival.



Flor Gil (filha de Bela Gil) deu o exemplo: durante todo o show, ela usava um boné vermelho que exibia a frase: »Make Lula Great again«. Flor Gil tem papel de destaque no vídeo que promove a canção »Lulá lá«, uma adaptação da versão original de 1989.

Agora ele é imortal

Depois de ter sido condecorado »Imortal« pela Academia Brasileira de Letras (ABL), Gil foi levado para um outro patamar; ficou menos acessível, quase indisponível. Para um artista do cunho político como o ex-Ministro da Cultura não basta entregar o produto musical, sempre de primeiríssima qualidade e inquestionável. Entretanto, só falar com a imprensa estrangeira deixa uma impressão que nada combina com o Gil de poucos anos atrás. Aquele que fazia exercício com a bomba de respiração antes de entrar no palco em Berlim ou aquele da metade dos anos '90 que, saindo do elevador do Hotel Maksoud Plaza em São Paulo durante o festival Hollywood Rock, foi primeiramente cumprimentar os funcionários da cozinha. Essa cena nunca mais saiu da minha cabeça, assim como aquela nas Nações Unidas quando enquanto Ministro da Cultura, quando o Brasil era bem outro e instigando o então Secretário-Geral da ONU a entrar no groove e fora de qualquer protocolo, gentilmente o designou tomar »posse« dos atabaques. Gestos como esses, fazem toda a diferença na vida das pessoas, fica desenhado na retina.


 
O grupo de brasileiros que vieram de longe para ver o baiano, desenrolaram no corrimão da escada que dava para o backstage, uma toalha exibindo o presidente Lula. No início de Julho, a toalha já era mais do que uma campeã de venda nos camelôs das grandes cidades brasileiras, mas um sinal claro de tomar posicionamento político com visibilidade, depois de anos de medo de fazê-lo.

Vários apelos  e coros »Gil eu vim aqui pra te vê!«, e sentar no degrau duro de mármore por mais de uma hora, não foi suficiente para convencer a produção, nem a de Gil nem a da casa, em agilizar um contato com a »torcida«, que se mostrou ainda mais decepcionada quando constatou que Gil saiu pela porta de trás do seu camarim que dá para no jardim da Casa das Culturas.

Outro aspecto para aumentar ainda mais a impermebialidade de Gil:  durante toda a turnê, a equipe da @Primevideo BR viajou junto com a banda para criar a segunda temporada de »Em Casa com os Gil« (Direção Geral de Andrucha Waddinton) e a (merecidíssima) condecoração através da Academia, parece que Gil mudou para um outro patamar, mais longe dos verdadeiros fãs-raiz e dos de  carteirinha. Nunca o senti tão longe, blindado, tão distante, como desta vez em Berlim.

O Backstage  da Casa das Culturas do Mundo, quando nos shows de música brasileira, se tornou uma plataforma que só »recebe« quem tiver o aval da chefe da equipe de produção local.  Também aqui em Berlim, mesmo sem a obrigatória pulseirinha, o divisor de águas acabou sendo a classe social, além da hostilidade sem precedentes com a autora desse texto, incluindo o agravante em dificultar meu trabalho como jornalista. Entrevistas só se realizam, quando há contato direto com o Brasil. Cada requerimento de entrevista se torna uma celeuma. É pérolas aos porcos.

Um lugar concebido para celebrar a cultura e o diálogo de diferentes referências culturais, tem seu departamento de Música, sucumbindo sucessivamente às mesquinhezas e, aproveitando a onda da pandemia, encontrou uma nische para se esconder atrás de regulamentos que nada mais são do que uma falácia.

Gil veio a Berlim. O show foi musicalmente eletrizante, a gente toda mostrou muita garra e muita vontade de fazer, mas fica o gosto amargo da mediocridade num setor onde para ela, as portas deveriam estar fechadas.

Eu sinto mesmo falta do Gil daquela manhã de sábado no saguão do Maksoud Plaza na metade dos anos '90 ou até mesmo do encontro cheio de ternura no Backstage da Filarmônia de Hamburgo, em 2019, aliás, o melhor show de Gil, entre os inúmeros que presenciei.

Certa vez em papo informal com o humorista Ceará, Marília Gabriela falava do ponto alto de sua carreira como entrevistadora. Quando foi perguntada sobre Michael Jackson, ela declinou a dinâmica da fama do cantor, afirmando que pouco depois de estar no Brasil em 1979, ele »foi pra Marte.

Espero que a ida de Gil pra Marte seja temporária e, da próxima vez quando vier a Berlim, outras pessoas estejam encarregadas da produção e que saibam semear um clima agradável e de integração entre público e artista. Independente disso; e se a viagem não for temporária... imortal pra mim, ele sempre foi. E sempre será.

Fátima Lacerda é jornalista radicada em Berlim desde 1988,
curadora de filmes e jornalista free lance.
Para novacultura escreveu, recentemente, sobre Adriana Calcanhotto