Celebração da Cultura e da Negritude no coração da Lapa

30 Dez 2022

Chico César. Foto: Fatima Lacerda

Chico César no Circo Voador, Olodum na Fundição Progresso: A efervescência cultural na Lapa com exemplo num fim de semana memorável, é o retrato mais eletrizante e mais visceral do Brasil sendo feliz de novo…

Um retrato do Zeitgeist no Brasil

de Fátima Lacerda, direto de Berlim.

Dentre as descrições citadas na »Antologia da Lapa«, o autor Almeida Fischer descreve o ponto dos malandros como »O velho e feio bairro da Lapa (em homenagem à Nossa Senhora da Lapa do Desterro), talvez o mais sujo e o mais triste bairro do Rio«. O reduto da boemia condiz ao simbolismo da malandragem e da vida noturna. Além disso, o espaço abrigou moradores famosos como o fundador da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis, que viveu na rua da Lapa entre 1874-1875, Carmen Miranda, os escritores Manuel Bandeira e Jorge Amado, Lamartine Babo, Péricles Maranhão, Oreste Barbosa e o músico Heitor Villa Lobos.

Um dos maiores símbolos históricos e figurativos da malandragem e da vida boêmia da Lapa foi Madame Satã, eternizado na tela do cinema pelo ator Lázaro Ramos personificando a história de João Francisco dos Santos e, com toda a certeza, o melhor trabalho de Karim Ainouz, diretor cearense radicado em Berlim.

O Circo Voador, projeto que iniciou no bairro elitista Ipanema foi audacioso criado e realizado em 1982 e tomado por grupos de teatro e de música. Foi cassado em 1996 pelo então prefeito Cesar Maia e fechado até 2002, estabeleceu um Manifesto, com um tenda que ansiava suprir a carência de músicos de alcançar o grande público. Graças à produtora Maria Juçá e a ação popular que moveu contra a Prefeitura, ela obteve os direitos de abrir o Circo, o sonho pode continuar. Por determinação da justiça, a prefeitura teve que reconstruir o espaço.

Legião Urbana, Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Engenheiros do Hawaii, cometas musicais dos anos '80 e que se tornaram termômetro da »Geração Coca-Cola«, tiveram ali, seus primeiros shows. A Domingueira Voadora comandada pela Orquestra Tabajara aos domingos, arredondava a irreverência do DNA que se cristalizava enquanto mantinha viva a tradição da boemia, teimosia e irreverência. A creche, também criada pelo projeto, possibilitava guris e gurías assistirem ensaios de grupos de dança e música. Grupos de Capoeira também tomaram conta do Circo, isso numa época em que a arte negra e africana ainda era »coisa de vagabundo«.

Na música

Foi a canção »Faraó Divindade do Egito« composta por Luciano Gomes e eternizada na voz da recém-nomeada Ministra da Cultura, Margareth Menezes, o ápice da austeridade do movimento negro. E ele brotou na ruas do Maciel Pelourinho e teve efeito dominó. Não bastavam mais os cabelos trançados, havia também lugar para os turbantes.

Pelourinho
Uma pequena comunidade
Que porém Olodum uniu
Em laço de confraternidade

Despertai-vos para
Cultura egípcia no Brasil
Em vez de cabelos trancados
Veremos turbantes de Tutancamon  

E nas cabeças
Enchei-se de liberdade
O povo negro pede igualdade
Deixando de lado as separações

Depois do sucesso estrondoso da música que entrou para a parada de sucessos e já  se fazia presente em playgrounds em dias de churrasco da classe média branca, as outras manifestações começaram a ser vistas com outros olhos. Não eram mais »coisa de vagabundo«. Nesse processo de conscientização e tomada de lugar de fala, o OLODUM foi fundamental.

Retrato do Zeitgeist

Pulando vários anos na história, escrevemos o ano de 2022. Uma pandemia que representou cisura de cunho civilizatório, fez com que o Circo ficasse fechado por muito tempo. O silêncio se tornou a trilha sonora na Lapa, mas também pelo Brasil afora. O ex-gigante havia sido sequestrado, amordaçado, sob o comando da branquitude fanática de uma burguesia vingativa de patriotas e cidadãos do bem que desapropriaram os símbolos de patriotismo para usá-los como escudo.

Anos se passaram, o Circo e seu vizinho e também caldeirão efervescente, a Fundição Progresso reabriram, suas luzes retornaram aos palcos. Agora os tempos são verdejantes …

palmeiras imperiais foto: Fatima Lacerda

As palmeiras imperiais e os Arcos-da-Lapa nos deixam, por um minuto, acreditar num cenário bucólico, mas da varanda da Fundição, vê-se toda a efervescência, o engarrafamento de carrinhos de X-tudo, o misturado amarelo dos táxis, os cambistas, os que vieram só pra olhar e os que vieram pra ficar e o olhar solitário da mulher na varanda, depois de uma briga definitiva com o namorado, fitando a noite carioca.

Em 2022, no preâmbulo das eleições, os adesivos já anunciavam a chegada de »Verdejantes tempos e mudanças nos ventos dos nossos corações«, como já atestava o texto da música da Leila Pinheiro, no fim da Ditadura Militar. »Vencemos a milícia sem dar nenhum tiro«, disse o humorista e ator Gregorio Duvivier no seu programa semanal na HBO. Esse clima de ter vencido, mas sobre tudo o alívio sentido infinito e a volta para o amor, foi visceral num só fim de semana na Lapa e formou a foto do Brasil atual, onde rege o alívio e o resgate do Brasil que não tinha medo de ser feliz.

Chico César. Foto: Fátima Lacerda

Na sexta-feira, 18.11. Chico Cesar chegou com sua afinadíssima banda passando a visão: »Estou vestido de amor!«.

A homenagem do DJ, antes do início do show, à recém-falecida Gal Costa, nos presenteando com os EverGreens da baiana e com a trilha sonora das nossas vidas, já deixava nosso coração e já  quentinho.

O paraibano cidadão-do-mundo chegou com uma vestimenta com a elegância de um Rei Senegalês, aumentou ainda mais o clima de alívio e de descarregar o ódio. Em sua guitarra, um adesivo com o rosto de Lula.  Gregório (Duvivier) também marcou presença na plateia naquela noite.

O show de Chico Cesar foi uma celebração pela volta dos grandes shows como sinônimo de encontros, mas também pela volta da democracia que por muito pouco, não sucumbiu ao golpe em curso. Enquanto a eletricidade do show aumentava e a noite parecia não mais acabar, o produtor, visivelmente cansado, olhava pro celular, esperando o show acabar, mas o Chico e sua virtuosíssima percussionista, Simone Sou, tinham outros planos. Simone está na banda desde o início. Me lembro dela com um imenso turbante, tocando em Berlim em 2004, no primeiro show de Chico nas terras daqui.

O Artista, esgotado, ajoelhou na beira do palco com a cabeça entre as pernas reverenciando o momento, enquanto incontável número de mãos e dedos, acariciavam sua cabeleira. Ao se levantar, seu semblante era de quem estava em estado de graça. Mais uma vez, o Circo Voador voltava ao seu DNA: fazer acontecer e celebrar cultura!

Depois do show de duas horas e meia, saímos abundantes em gratidão e de coração fervendo. A leveza pairava sobre a madrugada carioca à sombra das palmeiras do império. Era o Brasil voltando a ser feliz.

Fundição da Lapa. Foto Fatima Lacerda

Negritude sem medo

Ali ao lado, a Fundição Progresso tinha um programa especial para a noite anterior a do dia 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra. A convite do jovem grupo Awurê, OLODUM, o Hours Concours entre as bandas de Samba-Reggae, injetou no palco e nas arquibancadas da Fundição, o clima de ensaio da Banda, as terças-feiras, na ladeira do Pelourinho. Mulherers usando turbantes, roupas coloridas e tomando todo o espaço em seu lugar de fala, é um retrato do Brasil que voltou a ser feliz no exercício da negritude, sempre em dobradinha com a cidadania.

João Jorge. Foto: Fatima Lacerda

 

Como o acaso quando faz o serviço é sempre matemático, ele quis que eu encontrasse com o presidente da banda no setor de camarotes. Nos anos '90, fui empresária de turnê da banda durante 6 semanas pela Europa. Essa jornada mereceria um outro texto, mas o denominador comum, foi encontrar João Jorge. Já perdi as contas de quantos anos ele preside o grupo: »Como você conseguiu ser presidente do Olodum por tantos anos?«, indaguei com minha espontaneidade jornalistícia de praxe. Nenhum presidente gosta de ouvir essa pergunta. »Houveram eleições. Eu saí, depois voltei«, foi a resposta. A dinâmica dos fatos fez com que , entre o show do Olodum em convulsivo solo carioca, Margareth Menezes cantora baiana, nordestina e afrodescentende e ativista em causas sociais, fosse eleita Ministra da Cultura e João Jorge, Presidente da Fundação Palmares.

Falamos dos tempos de outrora e fique sabendo que muitas pessoas do elenco da época da turnê, morreram. Quando o show iniciou, eu ainda não havia notado o melhor de tudo: 3 integrantes da turma daquela época ainda estão firmes e fortes, batendo os tambores, celebrando a banda de maior impacto social do Brasil: o Gilmário e o Memê, da qual a batida nos tambores, é inconfundível 20 anos não apagaram essa sonoridade única. Meu momento de histeria incontida foi ao notar a presença de Lazinho no palco. Com 66 anos, a voz-trovão, desde sempre. Ao entoar os Evergreens, meu coração quase explodiu. »A vida é maravilhosa!« esbravejei pra João Jorge, ao meu lado junto com a diretoria do clube no camarote de número 7.

Que eu veria o show do Olodum em data tão marcante, eu já sabia, mas o fator surpresa veio com os Evergreens. com os protagonistas daquela época e com o Caldeirão de Bruxas no qual os cantores transformaram o solo da Lapa. Que momento de mágico estar neste lugar! Com a equipe assistindo o que foi muito além de um show para celebrar a negritude; uma apoteose, uma catárse com pessoas das arquibancadas fazerem o trenzinho típico do carnaval em Salvador. Até mesmo o presidente, sempre com o olhar crítico e sisuzo (e cheio de história pra contar sobre a apresentação da banda no Egito, terra dos Faraós, no início Novembro) levantou as sobrancelhas e esboçou um sorriso de quem foi surpreendido.

livro fala negão de Joao Jorge

No livro »Fala Negão« de autoria de João Jorge, ele resgata a criação do Olodum, que tem sua raiz no Maciel Pelourinho, criado desafiando estereótipos e demarcações sociais não escritas, lugar habitado por prostitutas e trabalhadores sem carteira. Hoje o Pelourinho é um lugar de resistência e celebração da cultura negra, lugar de passeio, conscientização e encontros, destino bem parecido com o da Lapa, no miolo do Rio de Janeiro.

A apoteose que foram os dois eventos em lugares vizinhos, mas que que tem o mesmo olhar, foi um termômetro sobre o clima político-cultural do Brasil naqueles verdejantes tempos da Leila Pinheiro.

Nos dois encontros entre artista e público, entre expressão e celebração e louvou à cultura, o maior tenor foi o alívio e a libertação do peso do ódio, naquela Vibe do samba »Que Tal Um Samba?« do outro Chico, o Buarque: »Entrar na roda da Gamboa e desmantelar a força bruta« e dançar nos Verdejantes Tempos. A efervescência cultural na Lapa com exemplo num fim de semana memorável, é o retrato mais eletrizante e mais visceral do Brasil sendo feliz de novo. Os escombros de um desgoverno sem prescedentes na história da jovem democracia Brasil começam a ser juntados. A nomeação de uma artista, mulher nordestina, negra e ativista em vários projetos sociais juntada à reabertura do Ministério da Cultura são ingredientes para o Brasil voltar a brilhar pela sua cultura e diversidade. No fim de semana da Consciência Negra, a Lapa voltou a brilhar em toda a sua plenitude e diversidade. Foi em dobradinha em mais do que dois shows memoráveis, foi a constatação do Brasil voltando a ser feliz. E o melhor; sem medo.

Vários Autores
Antologia Da Lapa
Ed. Desiderata, 2007

João Jorge Santos Rodrigues
Fala Negão.
Um discurso sobre igualdade
Fundação Casa de Jorge Amado 2021



Fátima Lacerda é jornalista radicada em Berlim desde 1988,
curadora de filmes e jornalista free lance.
Para novacultura escreveu, recentemente, sobre Gilberto Gil em Berlim