todas as cores – Adriana Calcanhotto

22 Jun 2022

de Fátima Lacerda, Berlim.

Depois de acompanhar o baiano Gilberto na temporada europeia em 2021 como convidada especial (incluindo show no Colisseu em Lisboa dia 02/11 e no qual eu estava) num período de Intermezzo da pandemia que silenciou as massas e deixou os palcos abandonados, impedia de acumular gente, Adriana Calcanhotto voltou aos solos europeus e desta vez, acompanhada de uma pequena equipe com direito a empresário novo e com sua ferramenta de labuta, seu aliado, escudo, válvula para a rebeldia: o violão.

»Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome. Cores de Almodovar, cores de Frida Kahlo, cores«.

O acorde inicial da turnê 2022 foi entoado em Zaragoza, na Espanha e a Grande Final foi na Officina Pasolini, em Roma.

No Intermezzo, a engenheira e projetista de canções, como ela mesma se auto-definiu durante uma web-aula em 2020 sobre o processo criativo e motivo das letras, passou por Berlim, solo que ela aliás, conhece muito bem.

 

Recordar...

O show no palco do conglomerado cultural »Radialsystem« em 2006, quando acontecia a Copa do Mundo de Futebol na Alemanha foi um dos mais marcantes da Adriana na capital. Num fim de tarde de calor dos trópicos num galpão multi-adaptável, com tubos metálicos gigantes e com espaço zero entre as cadeiras, na primeira parte do show, ela incluiu o ritual de longamente acender um cigarro e, curtí-lo como faz um bon vivant, arrancando risos e sussuros de supresa da plateia, exatamente no ano em que na Alemanha, o cigarro era banido de quase todos os lugares fechados.

Depois foi a vez de ocupar o palco da Academia de Artes para dancar o »Parangolé Pamplona«, enchendo o palco de tecidos das mais diferentes cores e instigando e intimando a plateia para fazer o mesmo com ela no palco. Uma festa de cores alinhavada de exuberância e pé no chão.

A essência do Parangolé na Arte de Helio Oiticica, em forma de expressão artística e inspiração resultante de seu contato com a Agremiação Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira em 1964, estava toda ali. »Estruturas com panos para envolver o corpo de uma pessoa (...) aquela cor se movimenta e se solta no espaço.« (Fonte: Entrevista de Paula Braga, Pesquisadora à Rede Minas).

 

Herança cultural

A paixão pela estética, constante vertente no trabalho da também escritora e compositora já vigorava desde quando era miúda, no seio das origens familiares: filha de baterista de jazz e bossa nova e de bailarina, são fortes indícios para a percepção estético-musical exibida em décadas de sua carreira.

O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no peito nu
Branco no branco no peito nu

Berlim já foi várias vezes palco para a moça que nasceu do Rio Grande do Sul e que, certamente por isso, soube filosofar de maneira tão exata e bem humorada, a essência do SER CARIOCA:

Cariocas são bonitos
Cariocas são bacanas
Cariocas são sacanas
Cariocas são dourados
Cariocas são modernos
Cariocas são espertos
Cariocas são diretos
Cariocas não gostam de dias nublados

Cariocas nascem bambas
Cariocas nascem craques
Cariocas têm sotaque
Cariocas são alegres
Cariocas são atentos
Cariocas são tão sexys
Cariocas são tão claros
Cariocas não gostam de sinal fechado

 

Segunda Sem Lei

Era uma segunda-feira (31/05) de final de primavera. O show estava agendado no clube de música »Quasimodo«, que já teve seus tempos de glória no monopólio da vida noturna da cidade de Berlim, na época em que a cidade era dividida pelo Muro. Com a realidade da Berlim Unida, ganhou concorrência, mas se mantém em postura digna de um Grand Place da boa música. Por seu palco já passaram muitas feras do jazz, da World Music e também da MPB: Marisa Monte, Jaques Morelembaum, Marcus Miller, a banda de Frank Zappa »The Mothers of Invention«, Neil Young, Nils Landgren, Danilo Caymmi, Ed Motta, Milton Nascimento, para citar alguns.

O violão e as partituras não são as únicas ferramentas de trabalho de Adriana, que sempre teve um pé na literatura. Antes do mundo parar, ela lecionou »Composição« na Universidade de Coimbra, em Portugal. Sua paixão pela língua portuguesa vai muito além dos palcos.

Dia 07/05 no Dia Mundial da Língua Portuguesa, em seu Instagram, Adriana postou: »Tive a honra de representar a Universiade de Coimbra na Semana da Lusofonia no Consulado Geral de Portugal, em Botafogo ao lado da Professora Doutora Ana Paula Laborinho, Diretora na Org. dos Estados Ibero-Americanos para Educação, Ciência e Cultura«.

Nao terei a pretenção de investigar o que veio primeiro; se a paixão pela poesia ou pela música. Fato é que Adriana é uma das artistas mais ecléticas da MPB.

Na canção »Traduzir-se«, ela também flerta com o filsófico.

Uma parte de mim
É só vertigem
Traduzir uma parte
Que é uma questão
De vida de morte
Será arte?
Será arte?

 

O início

A arte me foi apresentada através de um CD »Senhas« com uma moça esquisita de cabelo curto e oxigenado na capa, que minha Mãe me enviou pelo correio, pra Berlim.

Na premissa de que o acaso te protege quando você está distraído, o universo quis que eu estivesse de férias em Salvador e, logo depois da minha chegada, tomar conhecimento do show de Adriana Calcanhotto na Concha Acústica, sob o calor dos trópicos, encontrei-me com a trilha sonora da minha vida e que até hoje em atualidade, nada perdeu, nada ofuscou.

A dignidade na postura libertadora quando ela interpreta, »Devolva-me«, falando de um lugar de extrema beleza, mas que não mais nos pertence exala força e determinação no labirinto da mais profunda dor, sem desencadear uma dicotomia.

Rasgue as minhas cartas
E não me procure mais
Assim será melhor, meu bem!
O retrato que eu te dei
Se ainda tens, não sei
Mas se tiver, devolva-me!
Deixe-me sozinho
Porque assim
Eu viverei em paz
Quero que sejas bem feliz
Junto do seu novo rapaz

Depois eu estaria, também por acaso, em Fortaleza, onde em Janeiro de 2000 ela se apresentaria no histórico Teatro José Alencar. Como o meu marido estava de bermudas (mesmo de linho e marca top) fomos vetados a entrar no teatro e assistir ao show.

Depois vieram vários em Berlim e eu estive em todos eles. Nesse de 2022, a expectativa era imensa. Ao chegar no terreno onde fica »Quasimodo« pertinho da Estação Bahnhof Zoo, outras e outros veteranos da cena brasileira em Berlim estavam com frio na barriga. Para a maioria alí presente, era o primeiro show em lugar fechado desde o início da pandemia e num momento de escassez do exercício da brasilidade em áridas terras prussianas.

Olhares, abraços, sorrisos e histórias sobre como superamos os dois anos de secura cultural e alegria de rever todas e todos e conhecer novas almas brasileiras com o mesmo anseio a ser alimentado naquela noite, naquele porão cultural.

O clima no local bem cheio, mas não lotado, era de celebração de encontros, amizades e muitas saudades; de tudo.

Com um vestido preto longo, Adriana entrou no palco e se posicionou em cima do tapete que dava um clima de sala de estar e sem o tradicional banquinho para quem toca violão. A primeira parte do show teve como protagonista as próprias músicas, sem muita conversa. Na segunda, ela contou sobre o período ativo-über com inúmeras composições, a história da música sobre a morte do menino Miguel, no Recife e nela acirrada crítica social.

 

»2 de Junho«

No país negro e racista
No coração da América Latina
Na cidade do Recife
Terça-feira 2 de junho de dois mil e vinte
Vinte e nove graus Celsius
Céu claro
Sai pra trabalhar a empregada
Mesmo no meio da pandemia
E por isso ela leva pela mão
Miguel, cinco anos

 

De trás dos montes

A conexão de Adriana Calcanhotto com a língua portuguesa vai mais do que cultural, ela é visceral-literária.

Em vários momentos do show em Berlim, ela comentou sobre o tempo da pandemia e um dos desdobramentos de quando o mundo parou. Entre eles, o ficar impedida de lecionar »Composição« na Universidade de Coimbra.

Do seu mood workoholic-compulsivo no exercício de criar juntando à saudade, resutou a música »Corre munda«. Adriana faz a viagem contrária de Goncalves Dias em seu poema »Canção do Exílio«, escrito em 1843 e publicado em 1857 no livro »Primeiros Cantos«. Nele, Dias louva as belezas do Brasil e sua vontade em voltar ao país.

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Enquanto o poeta português eternizou em sua obra o canto do sabiá, Adriana fez uso da autenticidade do céu cinzento de que paira sobre Coimbra e o Rio Mondego, como metáfora para a melancolia da »compositora sem eira nem beira«. E de fato: o exercício de contemplação do Rio Mondego, lençol de tecido grosso e adormecido é um ato que nos eleva ao sublime, numa dicotomia dançante entre o letárgico e a uma beleza inexplicável, até mesmo pela engenheira de canções, Adriana.

Não existe rima para ti, Coimbra
Nem achei palavra para explicar-te
Não existe rima para ti, Coimbra
Nem achei palavra para decifrar-te

Não permita Deus que eu morra sem voltar
A flanar-te sob o céu cinza
A encher-me os olhos com o rio raso que te serpenteia
Por onde vagueia tua compositora sem eira nem beira

Corre o munda

Não existe rima para ti, Coimbra
Nem achei palavra para explicar-te
Não permita Deus que eu morra sem voltar
A flanar-te sob o céu cinza
A encher-me os olhos com o rio raso que te serpenteia
Por onde vagueia tua compositora sem eira nem beira

 

Coração quente

Podia-se sentir primeiramente emanar e depois aflorar, de maneira muito orgânia da plateia, uma ânsia em se posicionar politicamente, mas o show intimista não é solo favorál para emoções arrebatadas. Depois de um longo silêncio total na platéia, magnetizada com a presença da tão esperada artista, mais tarde vieram sim, os gritos »Fora Bolsonaro!« surgiram, os »Lula« também. Isso ainda antes dos Evergreens que não podem faltar, já que fazem parte da nossa trilha sonora. Ao sair do palco, depois do BIS »Maresia« e »Fico Assim«, ela fez bem discretamente o »L«, não deixando dúvidas em quem irá votar em outubro.

»Vamos comer Caetano!«, a canção de saborosa antropofagia, faltou no repertório apresentado em Berlim. Ao ser perguntada por mim no camarim, depois de show, o motivo da ausência, ela alegou »falta« de instrumentos não presentes na bagagem, pelo formato solo e intimista.

Mesmo depois de já passada a meia-noite da segunda-feira, Adriana ainda recebeu algumas pessoas no camarim: um sorriso gentil, sincero, um olhar interessado e até mesmo ouvidos para aquelas histórias inadiáveis, como a minha o porquê não consegui falar com ela no camarim depois do show com o Gil, em Lisboa em novembro de 2021.

Indo à sua direção, vendo-a já com a mala nas mãos e de máscara já a postos para deixar o horroroso espaço frio do corredor do »Coliseu«, eu »esbarrei« no músico Domenico Lancelotti, com quem engrenei uma conversa, ficando maravilhada com o fato (pra mim, novo) que ele há tempos reside na capital lisboeta. Quando o papo terminou, olhei para o lado e Adriana já tinha partido. Sobre o impecilho de assistir ao show em Fortaleza, ela talvez nunca venha a saber, mas não pude deixar de ratificar que estava naquele show histórico no Radialsystem aqui em Berlim, no qual ela fez ousado exercício de rebeldia, acendeu o cigarro durante o show. Ela também lembrou do nome do lugar. Mesmo depois de 16 anos!

A despedida foi com um abraço de muita ternura e claro, uma Selfie, que não publico em lugar algum. Ana Carolina foi certeira na música »Pra Rua Me Levar« na estrofe: »Momentos que são meus e que eu não abro mão«.

Quando sai do camarim, o salão do »Quasimodo« estava quase totalmente vazio. Só mesmo o barulho da equipe do bar, transportando engradados com garrafas de vidro vazias, de água mineral, cerveja ou vinho. Algum movimento de técnicos era o restante do que sobrara do Live Act.

Saindo de bicicleta, de volta pra casa, meu coração esbanjava serenidade entrelaçadoa com Melange desencadeando uma insustentável leveza, sim, felicidade incontida, o que em alemão se traduz com a palavra »Glückseligkeit«, as redondezas do Cuore, aquecidas e a lembrança viva de um pedacinho do Brasil que a gente quer e anseia: um Brasil de todas as cores, como os tecidos do Parangolé, espalhados pelo mundo.

Fátima Lacerda, Berlim 20.06.2022
[Fátima Lacerda é jornalista radicada em Berlim desde 1988,
curadora de filmes e jornalista free lance.
Para novacultura escreveu, recentemente, sobre Fernanda Montenegro na ABL