Baía, Luanda, Lisboa

01 Dez 2023

Baía, Luanda, Lisboa: Doutor »Honoris Causa« para Gilberto Gil

Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão. Todo artista tem de ir aonde o povo está (Milton Nascimento)

Foram 18 shows em 11 países com a turnê »Aquele Abraço«. Em Berlim, onde se apresentou dia 01 de Outubro, o show foi anunciado como »Farewell Tour«. Para os dois baianos mais famosos da música mundial, 2023 parece ser o ano de despedida dos palcos de além-mar, mas o Showbusiness está cheio de supresas.

Em pleno 2023, os Dinossauros dos Rolling Stones, da mesma geração de Gil produziram em velocidade blitz, um disco depois de 18 anos e já tem datas marcadas para a turnê nos EUA. Os Beatles renasceram com »Now & Then« e, com auxílio da Inteligência Artificial, fizeram renascer a voz cristalina de John Lennon.

When is now? é a pergunta do Zeitgeist.

Conjunto da Obra

Caetano Veloso, companheiro de sela de Gil durante o exílio em Londres, amigo, parceiro e companheiro de uma vida também fez a sua despedida dos palcos europeus: »Se alguém agora quiser me ver, terá que ir ao Brasil«, disse ele durante passagem pela Espanha. Os dois baianos ainda dividem o mesmo período de reconhecimento pelo conjunto da obra enquanto se despedem do Velho Continente.

A Universidade de Salamanca, na Espanha, concedeu ao baiano filho da Dona Nonô, o título de Dr Honoris Causa, aquele que, como nenhum outro, personfica o Lebensgefühl da América Latina.

O Imortal Gilberto Gil foi condecorado pela Universidade Nova de Lisboa. Com a condecoração exatamente no contexto de seu cinquentenário, a instituição quer ratificar seu lugar de exercício cívico, declara o Reitor,  João Sàágua durante a cerimônia.

No saguão víamos exibidos no telão, textos da música de Gil.

Trago a minha banda
Só quem sabe onde é Luanda
Saberá lhe dar valor.

Na sala da reitoria encontrava-se o que Portugal tem de melhor representância na literatura, diplomacia e intelectualidade: Músicos, poetas, atrizes, diretores, atores e protagonistas da sociedade civil. Na fileira reservada, a família e amigos de Gil.
Os mais relevantes da imprensa portuguesa e alguns da imprensa brasileira, acompanhavam a cerimônia como se tivessem frente à um ritual religioso no estrito sentido, mas de fato, nos acometia a todos teimosa sensação que estávamos presenciando um momento histórico. Não que Gil não já estivesse sido premiado pelos quatro cantos do mundo, mas uma condecoração em solos portugueses e exatamente um ano e um dia depois da vitória do presidente Lula do qual gabinete ele pertenceu entre 2003-2008) e no início da redemocratização do Brasil, foi um momento inesquecivel e que irá deixar o coração quentinho de quem teve a chance de alí estar quando Gil tiver se tornado uma estrela no firmamento.

»Para a Universidade NOVA de Lisboa, é uma honra e um privilégio distinguir Gilberto Gil, símbolo da cultura lusófona e inspiração para várias gerações. Tal como Gilberto Gil, também a NOVA acredita no poder transformador da Educação e na importância da Cultura como pilar fundamental da sociedade. Esta homenagem representa, também, o nosso compromisso com a excelência e a diversidade, valores que tão vividamente personifica«, explica João Sàágua.

Mesmo sendo um routinier em cerimônias de reconhecimento e homemagem à sua carreira e seus mais de 70 discos gravados, não segurou as lágrimas de emoção. Gil ratificiou o entrelaçado entre os dois países.

»Recebo essa honraria como gesto de amor, encharcado de carinho. A missão de estreitar os laços entre nossos povos irmãos e nossas culturas contíguas«.

Par encerrar a cerimônia, mais do que isso, coroá-la, o talentosíssimo pianista português Julio Resende nos intimou a um mergulho em águas cristalinas da sensibilidade. Em apresentação que ele executou mesmo com fortes dores nas costas, esbanjou sensibilidade em escolher, entre as 3 canções, uma das mais viscerais do Imortal: »Drão« e »Cálice« de autoria de Chico Buarque que durante a Ditadura Militar foi  símbolo-mór do estrangulamento do setor cultural da época.

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga?
Tragar a dor, engolir a labuta?
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.

O Mini-Concerto de Jullio Resende foi o pontapé incial da programação »Ventos do Brasil e de Portugal« composta por artistas brasileiros e portugueses e reinterpretação desse e do outro lado além-mar  de uma parceria entre a Orquestra Metropolitana de Lisboa, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da NOVA FCSH e a Embaixada do Brasil em Portugal.

Entre Protocolo & Improviso

Depois da cerimônia, Gil recebeu cumprimentos dos convidados especais.
No saguão, em uma longa fila que muito breve que se dissoveu em uma roda de fãs, pessoas com batas e professores dessa e de outra universidades perderam a pulseira VIP, a preferência pela atenção  do Imortal. No Intermezzo, Gil deu uma fugida para fotos com a família reunida só esperando o homenageado para completar imagem.

Coletiva de Imprensa
Enquanto no saguão os convidados desgustavam sucos, vinhos e brigadeiros em inusitado Melange culinário algo especialmente bem-vindo para os que foram »barrados« na cantina do local já que foi estipulado »por motivos de segurança« só servir funcionários da casa. Quem chegou cedo, ficou a ver navios. Só sobrara a máquina de sanduíches secos, frios e de valores exorbitantes. Não!

Enquanto alguns matavam a saudade dos brigadeiros que, confesso que tinham uma consistência mais para o lusofônico do que para o subtropical, o movimento no elevador para o andar de cima era intenso. Câmeras, tripés e cabos, além de jornalistas de rádio, TV e jornal impresso, corriam para a sala. »Somente 4 perguntas!« sinalizou com olhar sisudo, Vitor Alvito, coordenador da imprensa, Frame estipulado pela produção do artista que, sim, poderia ter sido mais flexivel frente à importância do evento.

O ex-Ministro Gil elogiou o preparo de sua conterrânea para exercer a função e revitalizar a cultura do Brasil.
Tive a chance de ser a última jornalista a fazer a pergunta, mas não sem ter que exercitar a teimosia brasileira para conseguir fazê-la; usei, como gancho, a recém- terminada performance do pianista Resende:
»O Julio tocando ’Cálice’ foi especialmente sensível. Estamos exatamente a um ano e um dia depois da vitória do presidente Lula. Como você vê o momento do Brasil?«

»Vejo o fortalecimento das instituições republicanas e democráticas que sofreram leves ameaças no último período. Vejo a restauração da Ordem Democrática do seu nível mínimo desejável.«

Decerto que o uso do eufemismo ao falar sobre »leves ameaças« se deve ao aspecto protocolar do evento. Entretanto, exatamente aqui e no contexto de comparação com o ex-governo, Gil poderia ter sido mais exato, mais cirúgico, já que as ameaças aos orgãos como o Supremo Tribunal Eleitoral e o Superior Tribunal de Justiça foram violentas, fato provado no ato terrorista de 08 de Janeiro de 2023.

Para finalizar, Gil recebeu um livro com a discografia da notória Amália Rodrigues. Também por ofício da diplomacia, ele nem teve coragem de rasgar o papel que encobria o livro. Foi o Reitor que executou o ofício mundano enquanto Gil, em voz macia e tímida, mas sem falsa modéstia, acrescentou que teve »a chance de conhecer« a artista.

Comedimento

O evento na Universidade não brilhou pela perfeicao matemático-prussiana; nem mesmo poderia.
Lá fora uma chuva ameacando cair. O funcionário Igor, que levou o recém-condecorado da entrada principal até o carro se desdobrava entre telefonemas, entrada intensa de carros, todos procurando uma vaga no estacionamento. O caminho de entrada para o prédio da reitoria confundia alguns, até acharem a rampa, um desafio também para quem ousava usar sapatos altos para o tão requisitado evento.
O que deixou o coração esbanjando contentamento, foi ver o semblante das pessoas que, teimosamente, ainda se mantinham no saguão e que, na sequência, mesmo com a chuva chegando (São Pedro só esperou Gil entrar no carro) acompanhavam o Reitor que levou o recém-condecora até o carro.

Depois de entrar no táxi de volta, a expectativa para o show de Julio Resende e António Zambujo que aconteceria dois dias depois, completava o sentimento de estar no lugar certo e no momento certeiro. O show dos dois amigos, reunidos no palco somente para a especial  ocasião, foi a foto perfeita da sinergia de duas culturas. Teve até improviso de Zambujo, depois de breve conversa com seu companheiro de palco, sobre como teria sofrido influência da música brasileira. Depois de citar os Dinossauros, ele acrescentou: »Claro, as novelas!!!«. Citou uma novela que, nem mesmo a noveleira de carteirinha com essa que vos lhe escreve conhecia. Fora do protocolo digo, na lata, entoou a música com uma naturalidade e um Flow, como se a estivesse ensaiado o dia inteiro, mas de fato, foi obra da memória afetiva com ingrediente de brilhância ao tocar o violão.

Ao executar »Drão« na voz sendo acompanhado por Julio no piano, notei a abrangência do desenvolvimento do cantor que o acaso posicionou exatamente na poltrona do lado da minha num voo de Madri para o Rio, lá em 2020, quando o Brasil tinha os problemas de sempre e antes do avião aterrissar, fizermos uma análise sobre qual música entoar à capela; se iríamos no clássico de Tom Jobim ou no político de Gonzaguinha sobre a pátria-mãe tao distraída e que anos depoi seria subtraida por temerosas transações. Treze anos depois, vejo o mais famoso torcedor do Benfica, no auge de sua produção criativa. A dobradinha Julio e Antonio foi um golaço, no âmbito da programação cultural para momento de celebração da língua, que como diz o outro baiano, é a nossa pátria.

[Fátima Lacerda é jornalista free lance e curadora de filmes, radicada em Berlim desde 1988.
Para novacultura escreveu, recentemente, sobre Adriana Calcanhotto.