Fernanda Montenegro na ABL

06 Apr 2022

A posse de uma atriz dos palcos significa o reconhecimento do conjunto da obra, enquanto a ABL recebe boa faxina em seus empoeirados corredores, é acometida de uma daquelas ventanias de noites de outono. Fernanda Montenegro, na medida exata, o frescor para varrer a poeira dos livros, instigar o virar da página do erudito e mesmo mantendo as letras e poemas como pilastra-mór e DNA, ousar o popular, fazendo-se perceber de maneira visceral, o que acontece quando uma atriz, no palco, recita versos, encorpora personagens. É o voar das letras, dos versos: mais do que isso: é sua emancipação.

Uma homenagem de Fátima Lacerda a Fernanda Montenegro

»Aprendi a ser o máximo de mim mesmo«.
(Nelson Rodrigues)

Arlette Pinheiro Esteves da Silva, nasceu em 16 de Outubro de 1928, como membro da segunda geração de uma família europeia: por por parte de pai, portugueses e por parte da mãe, italianos que imigraram para o Brasil no início do século XX. Ela cresceu em Campinho, bairro que fica entre Cascadura e Jacarepaguá, em solos cariocas.

Os ossos do ofício, primeiramente para a Rádio, a envocariam bem cedo. »Eu tinha um certo encanto com aquela máquina«, revela em entrevista para Pró-TV/Museu da Televisão Brasileira em 1999.

Já com 15 anos ela começou a trabalhar na emissora do Ministério da Educaçãoe Cultura (MEC), fundada por Roquete Pinto onde, depois de fazer um teste lendo um poema, foi contratada como locutora. »A emissora de Rádio sempre foi a minha universidade«. (...) »Ficou sendo o meu clube de diversão: tinha uma excelente biblioteca, uma excelente discoteca, os programas eram todos culturais«.

Quando Arlette se tornou »Fernanda«

Quando obteve a incumbência de redigir, na Rádio, ela quis inventar um pseudônimo.

»Eu era Arlette Pinheiro como rádio-atriz e locutora e aí quando eu passei a redigir, eu queria um nome literário (!!!) à la século IXX. Eu inventei esse nome. Existe um humor (intrinseco) nele. Ninguém se chama "Fernanda Montenegro"! (risos). A gente que inventa essas coisas!«

Mesmo com importante passagem pela TV TUPI, Fernanda nunca levou muita fé no formato de TV, devido à dolorosa experiência na TV Rio e com a falência abrupta da TV Excelsior.

Com outros Dinossauros, também membros da segunda geração de imigrantes europeus, entre eles Ziembinsky, Leon Hirsch, Gianfrancesco Guarnieri, Sergio Britto, Cacilda Becker, Fernando Torres, Eva Todor, Henriette Morineau, Maria della Costa, Italo Rossi, ela fez parte da nata do teatro brasileiro e, mais tarde iria fundar junto com seu marido e Fernando Torres, a compahia »Teatro dos Sete«, dirigidos por Gianni Ratto.

Sétima Arte

O cinema surgiu paralelo ao teatro levando à plenitude de uma atuação artística, mas foi ao arrematar o "Urso de Prata" como melhor atriz no Festival de Cinema de Berlim em 1998 com »Central do Brasil« de Walter Salles, que ela conquistou o mundo.

Em artigo sobre o desempenho de Fernanda em Berlim, o jornalista do jornal regional »Tagesspiegel« foi taxativo ao escrever sobre a protagonista: »Eu me apaixonei pelos olhos empapuçados daquela mulher«. »Dora«, éuma sobrevivente no terreno convulsivo que é a estação ferroviária Central do Brasil no miolo do Rio de Janeiro.

O Urso de Prata não »só« pesou na mala de volta para o Brasil, mas se tornaria impulso nunca visto, anteriormente, na carreira da atriz. Uma matéria do Segundo Caderno do Jornal »O Globo« de Dezembro 1999, resumiu: »O mundo conheceu Fernanda«.

Na sequência, vieram nomeação para o »Globo de Ouro« e, pela primeira vez na história do Cinema Nacional, a indicação pela Academia de Hollywood na categoria de melhor atriz por seu desempenho em »Central do Brasil«.

Os Emmys, o »Oscar da TV« vieram em 2013 e 2015 com seu papel de protagonista da Miniserie »Doce de Mãe«.

ABL de portas fechadas para escritoras

No Blog de Cultura, Política e Viagens, Pedro Eloi, com Mestrado em História e Filosofia da Educação PUC-SP, titula um artigo veiculado em 2013: »As mulheres e a Academia Brasileira de Letras«. Nele, Eloi cita um relato de escritor Jorge Amado eternizado em seu livro »Navegação de Cabotagem – Apontamento para um livro de memórias que jamais escreverei« publicado em 1997 no qual tece críticas severas ao escritor Machado de Assis como um bloqueador da entrada de mulheres para a instituição.

Machado de Assis X Jorge Amado

Jorge Amado nos conta neste seu livro sobre a dificuldade que foi a entrada das mulheres na ABL. »Essa história de exclusão das mulheres dos quadros acadêmicos foi uma das salafrarices cometidas por Machado de Assis quando fundou a chamada Ilustre Companhia, não foi a única, sujeitinho mais salafrário nosso venerado mestre do romance. Custou-lhe esforço chegar a branco e a expoente das classes dominantes, mas tendo lá chegado não abriu mão de nada a que tinha direito«. Vejam o Jorge Amado. Sempre tão elegante. Afirma ainda que Machado impôs dois vetos: »Nem boêmios – Emílio de Menezes só pôde ser eleito após a morte de machado – nem mulheres«, esbravejou Jorge Amado (Cadeira 23) em seu livro.

Eloi ainda vai mais longe na crítica: Machado de Assis teria conseguido driblar também a aceitação da escritora, Júlia Lopes de Almeida, da qual Jorge Amado recomendava os livros: »Machado tirou a questão de letra. Nomeou o marido no lugar Júlia, isto devidamente, combinado com ela. Do marido se conheciam apenas livros de louvor e homenagem.«

Jorge também revela outro detalhe interessante: »Também vem de Machado a tradição das cadeiras reservadas aos candidatos das diversas categorias do poder, cadeiras cativas do Exército, da Igreja, do Judiciário, das letras médicas: a tradição dos expoentes perdura ainda hoje«. Eloi ainda conta detalhes dos debates em torno da nomeação da primeira mulher para a ABL. Ao abrir o voto do companheiro Hermes Lima (Foi primeiro ministro de Jango) de quem ele jamais esperava o voto contrário: »Voto contra«. E se justificou: »Isso aqui não passa de um clube de homens, Jorge, no dia em que entrar uma mulher nem isso mais será: nossa paz se terminará, a fofoca substituirá a convivência. Que horror! E isso porque o homem era progressista«, arremata Eloi.

Foi a escritora Raquel de Queirou, aceita somente em 1997, 80 anos depois de sua fundação, que quebrou o jejum do exclusivo Clube do Bolinha, que até então reinava de forma absoluta no emponente prédio localizado na rua Presidente Wilson, no centro da cidade.

Para ter uma presidente mulher, a ABL esperou ainda mais: 100 anos. Até a escritora Nélida Piñon (»A República dos Sonhos«, »Vozes do Deserto«) assumir o cargo entre 1996 e 1997. Hoje, Pinon ocupa o cargo de Secretária-Geral.

Em seu artigo, Eloi se mostra cético com a vontade da ABL em ousar a modernidade, pinceladas de ousadia estética. Com a posse de Fernanda e, na sequência do cantor e compositor Gilberto Gil em 08/04/2022, essa dicotomia deixa de existir de forma rígida e absoluta, mas para a representabilidade da sociedade brasileira no século é um longo caminho: a ABL precisa ousar o projeto da representatividade cultural e dar continuidade ao processo que acaba de iniciar.

Um livro e uma intimação

Fernanda escreveu a biografia »PRÓLOGO, ATO, EPÍLOGO« (2019, Companhia das Letras). Quis saber qual é o seu poema preferido. Em carta, escrita a próprio punho, ela respondeu: O poema que sempre me vem à memória é de Fernando Pessoa:

O tempo em que se festejava
O dia dos meus anos...

O real motivo pela sua candidatura precisou de anos para se concretizar no universo e tomar a forma, expressa numa noite gloriosa de cerimônia de posse em 25/03/2022, muito mais do que de um cadeira que a tornaria imortal, como se à ela ainda tivesse sido atribuído esse rótulo.

A posse de uma atriz dos palcos significa o reconhecimento do conjunto da obra, enquanto a ABL recebe boa faxina em seus empoeirados corredores, é acometida de uma daquelas ventanias de noites de outono. Fernanda Montenegro, na medida exata, o frescor para varrer a poeira dos livros, instigar o virar da página do erudito e mesmo mantendo as letras e poemas como pilastra-mór e DNA, ousar o popular, fazendo-se perceber de maneira visceral, o que acontece quando uma atriz, no palco, recita versos, encorpora personagens. É o voar das letras, dos versos: mais do que isso: é sua emancipação.

Foram vários encontros casuais de Fernanda na ABL com Afonso Arinos de Melo Franco, jurista, professor, político, historiador, crítico, ensaísta e memorialista e que, na época, ocupava a cadeira 17. »Fernanda, escreve um livro e vem fazer parte da academia«, teria ele dito várias vezes em voz firme em retórica inegociável, intimado-a se candidatar.

Em discurso honesto-über, pincelado de Finesse diplomática, Fernanda repetidadmente ressaltou sua função como atriz do teatro, levantando o braço, olhando para os lados, procurando aliados, calibrando a voz com diferentes nuances de uma dicção por vezes de auto-ironia, por vezes para acentuar a relevância ou mesmo o caráter inusitado do que expressava ou um tom de espanto de quem acha tudo demasiadamente inusitado. Acima de tudo, o discurso, desde já épico, possuia uma aura de pé do chão que só aqueles que são realmente gigantes, tem. Fernanda deixou claro que não vê a posse como algo individual exclusiva à sua pessoa, mas algo muito maior.

Um abrangente coletivo

»Aceitei esse desafio à minha vocacionada vida vivida nos incontáveis e resistentes palcos desse nosso Brasil. Uma mulher de teatro, uma atriz (!!!) se candidata à Academia Brasileira de Letras, fato emblemático. (...) Esta conquista não está circunscrita à minha pessoa. Não! É uma ação abrangente, asublime da resistente história dos nossos palcos, agradece à essa casa o reconhecimento da nossa arte cênica.«

»Por que não obeceder?« indagou a atriz em voz alta, enquanto se virava para a parte direita e esquerda do imponente salão, envolvendo e deixando os presentes participarem do seu processo de decisão, arrancando risos de um público eletrizado, não »somente« com sua presenca física depois de 2 anos de isolamento social, mas também devido a um primoroso discurso, que abrigava uma Melange entre um tom protocolar, pinceladas de modernidade e auto-ironia no regojizo de como atriz dos palcos, ser recebida na casa.

Em discurso alinhavado com meticulosidade prussiana, Fernanda mencionou todos os seus antecedentes na cadeira número 17, citou suas características e respequitvas obras: entre eles, Roquete Pinto, Joaquim Osório, Antonio Houaiss e Hipólito da Costa, esse Patrono da cadeira.

O popular chegou à Academia

O pé no chão, a capacidade de filtrar entre momentos de Glamour e deter a essência, eu tive chance de vivenciar em alguns de nossos encontros, raros pela distância geográfica, mas sempre de grandes trocas e muita inspiração.

Era dezembro de 2010 e a novela »Passione« de Gilberto Braga, na qual Fernanda era protagonista vivendo a matriarca »Beth Gouveia«, estava nos últimos capítulos. No restaurante »Zucka« no bairro do Leblon, fomos almoçar num dia ensolarado de domingo. Depois de atravessar o restaurante e fazer tudo em volta parar por tão prestigiosa presença, fomos sentar no final do salão. Durante o ritual de colocar a conversa em dia, um senhor da mesa ao lado se aproximou e interpelou Fernanda. Poucos segundos depois, pela conversa, entendi que ele era um homem do teatro. Por alguns minutos, eles conversaram sobre a montagem do espetáculo DELE, como dois colegas que exercem o mesmo ofício e de igual pra igual, enquanto os demais clientes ainda lutavam com a petrificação e eletricidade por estarem em tão ilustre presença durante o almoço de domingo.

No Intermezzo de mais de 60 anos de palco, Emmys e outros Upgrades encheram a estante da sala, mas aura de elegância na simplicidade daquela que nunca deixou de ser a mulher dos palcos, permanece até hoje.

Com a posse de Fernanda e, na sequência a do cantor e compositor Gilberto Gil, o órgão que tanto pecou por preguiça em correr riscos, pelo Status Quo recebe, finalmente, uma injeção do Popular: a »Dora« de »Central«, a »Charlô« de »Guerra dos Sexos«, »Petra von Kant« de Rainer W. Fassbinder, textos de Bertolt Brecht e traduções de Millor Fernandes.

Com o baiano Gil, invade a silenciosa casa a sonoridade de Luís Gonzaga, do nordeste, sons dos outros tantos  Brasiis como também de Angola e da Nigéria. A irreverência de Bob Marley, o mistério que bate no coração dos »Filhos de Gandhi« a personalidade e o teclado espalhafatoso de »Chuck Berry Fields Forever« que junto com »Wait Until Tomorrow« em parceria de Gil e com Caetano no disco  »Tropicália2« forma a melhor expressão antropofágica da qual se tem notícia desde o exílio da dupla em Londres, também.

O louvor à arte dos palcos, em combinação com a literatura escreve história. Essa premissa resulta no melhor momento do discurso de Fernanda. »A raíz desta arte está na complexidade de só existir através do corpo e da alma de um ator e de um atriz, ao trazer a literatura dramática para a verticalidade cênica: atrizes, atores, incenadores, dramaturgos, cenógrafos, figurinistas. Somos uma raça indestrutível!«. Com essa última frase ela deu uma raquetada no desgoverno que, como primeira medida depois de tomar posse em 2019, extinguiu o Ministério da Cultura de um país de proporções continentais.

Novo Horizonte em dobradinha

O Brasil tem Fernanda e tem Gilberto. A exímia capacidade diplomática da atriz em agregar ao momento de posse um significado altamente político (da qual ela não economizou em metáforas) foi a resposta mais elegante às críticas recentes nas redes sociais de que ela »estaria se lixando para o Brasil« por ter declarado que não votará nem em Lula nem em Bolsonaro na ida às urnas em Outubro próximo:

»O mundo é um palco. E todos nós, seres humanos, somos atores nesses palcos. Agradeço e muito, com meu coração e minha razão estar sendo aceita nessa casa com esse elenco, protagonista!. (..) Emocionada, tomo posse, nesse momento, da cadeira número 17«.

2022 está sendo um ano decisivo para um país sucumbindo no cultura do obscurantismo e na luta contra a morte: das pessoas, das perspectivas, dos sonhos.

Fernanda Montenegro e Gilberto Gil são as duas personalidades artísticas mais relevantes e mais amadas do Brasil. Que essa reinterpretação ou reinvenção do significado do número 17, desapropriado desde as últimas eleições presidenciais em 2018, seja o início de um novo tempo: para a cultura, literatura e para um país que se tornou rascunho.

O acolhimento e recebimento desses protagonistas da cultura popular é mais do que uma brisa de renovação nas empoeiradas estantes que escondem grandes obras: é a nossa esperança de um outro país, no qual a cultura volte a ser um bem-imaterial, protegido pelo Estado e ratificado pela política pública. Que seja o início de um novo tempo, como expressam de maneira concisa e direta os versos da música do compositor Ivan Lins: »Um Novo Tempo«:

Pra que nossa esperança seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho que se deixa de herança


 Fátima Lacerda, jornalista radicada em Berlim desde 1988
é curadora de filmes e jornalista free lance.
Para novacultura escreveu, recentemente, sobre »dicotomias, sonoridades e Fernando Pessoa«